domingo, 30 de agosto de 2020

SENHORA DAS NEVES: UM RITUAL AGRÁRIO NO CALENDÁRIO LUNAR QUANDO O TEMPO SE ABRE E O DIABO SE SOLTA


SENHORA DAS NEVES:

UM RITUAL AGRÁRIO NO CALENDÁRIO LUNAR

QUANDO O TEMPO SE ABRE E O DIABO SE SOLTA

 

Por Miguel Monteiro

 

 

«Na última sexta-feira de Agosto, a cerca de 13 Km de Fafe, a serra de Fafe ganha uma particular excitação.

As festividades da Senhora das Neves são o atractivo de multidões de foliões que, naquele local, buscam o divertimento comum a todas as romarias minhotas.

Porém, todas elas têm algo de muito particular que motiva os forasteiros a marcá-las com a sua presença anual.

No caso da Festa da Senhora das Neves, o que anima particularmente todos os que a frequentam, além do tradicional acto religioso da Missa e da procissão é o tirar o diabo; para isso, o sacerdote coloca a santa na cabeça dos forasteiros e o diabo vai-se.

A crença na sua existência é afirmada pelas suas travessuras, por muitos testemunhados, e da sua estranha força manifestada no corpo de uma enfezada qualquer, que obriga à participação de um grupo de valentes na condução da possessa junto do altar, de modo que a santa lhe seja colocada na cabeça.

Na primeira década do século XVIII, o culto era praticado naquele lugar, desde o dia cinco de Agosto, até ao último sábado do mesmo mês, e, desde o primeiro sábado da Quaresma, até ao último sábado do mesmo período.

Naquele século, o Santuário é descrito como tendo começado por uma capela situada no cume da serra, mais tarde transformada em igreja, e situada junto de um largo terreiro com algumas árvores, que fazem o lugar aprazível e ermo, onde tinham fronteira os concelhos de Cabeceiras, Guimarães, Monte Longo e Celorico de Basto.




Hoje, é ainda um pequeno lugar do concelho de Fafe, territorialmente dividido, pelas freguesias de Aboim e Várzea Cova. A lenda atribui a origem do seu culto à descoberta de uma imagem, de cerca de palmo e meio, por uns pastores e que terá sido escondida por algum cristão durante as invasões árabes.

O lugar era designado por Allagoa, no século XVI, onde muitos, com alguma correcção, procuram referências semânticas a uma terra alagada, ou seja, com abundância de água, ou pantanosa.

Porém, a natureza montanhosa e agreste do sítio distancia-nos desta ideia, colocando-nos mais nos significados simbólicos da água.

Os ritos que usavam a água estavam associados, já nos tempos pré-romanos, a gestos simbólicos de purificação e fertilidade, permanecendo até aos nossos dias no ritual religioso de todas as crenças.

O cristianismo prolongou até aos nossos dias o seu uso nos ritos cristãos do baptismo, da morte, da primeira utilização de uma casa, edifício público, nas mãos do sacerdote antes do Santo Sacrifício, da primeira água dos banhos das crianças recém-nascidas e uma infinidade de rituais públicos e privados.




No lugar da Lagoa, inicialmente ligado à simbologia purificadora da água e ao culto da fertilidade, surge um outro símbolo, com igual efeito e com origens prováveis na Idade Média: o culto da Senhora das Neves que, quando colocada na cabeça dos romeiros, tira o diabo.

A fácil substituição dos elementos simbólicos, em que a Santa passa a ocupar a função da água, poderá ter como explicação a necessidade de excluir as mulheres de um santuário feminino.

As sacerdotisas brancas, que executariam os banhos santos, são substituídas por homens, sendo estas forçadas ao lugar de uma representação iconográfica da Senhora das Neves que as substitui na função purificadora e propiciatória da fertilidade.




Neste processo de cristianização do lugar que associamos à água vemos surgir uma Santa, cuja designação continua a ser a água em estado sólido: Neves. Esta denominação reforça a função simbólica purificadora através da cor branca que a água em estado sólido possui: as neves.

A água ou as Neves, como referência simbólica da purificação, ou brancura, quando colocada na cabeça dos romeiros liberta-os do negro e dos males, que aqui é reconhecido como tirar o diabo.

Actualmente, todos os que frequentam este lugar na última sexta-feira de Agosto, dirigem-se ao interior do Santuário onde lhes é colocada a Santa tirando-lhes o demónio, sendo necessária uma reza dita três vezes, pelo sacerdote.

Os frequentadores deste santuário cumpriam ainda, há cerca de trinta anos, um outro rito, também praticado na festa da Senhora do Viso, na serra da Lameira, através da simulação ritualizada da «morte».

Do terreiro central, onde se realizava a romaria, saíam, deitados num esquife, os que haviam feito tal promessa à Santa. Simulavam-se mortos, numa procissão rapidamente improvisada, não faltando a filarmónica presente para abrilhantar o momento.

A simulação da morte, era também simbolizada por vestes brancas utilizadas pelos romeiros que faziam o percurso da procissão cristã debaixo dos andores dos santos.

Os caixões foram proibidos e retirados destas festividades, realizadas à margem dos programas oficiais, e o uso de sudários foi-se perdendo com o tempo, sendo já raro o seu uso.

Porém, quer a simulação da morte ritualizada em acto festivo, quer dos amortalhados que se colocavam sob os andores, integravam manifestações ritualizadas da «morte» ou passagem para o novo estádio, abrindo horizontes para uma vida nova (novo tempo), ou novas vidas (fertilidade), como se se tratasse de um rejuvenescimento, do qual usufruíam os seres férteis.




Estaríamos assim perante o uso da água que afasta os males; a sacerdotisa que esconjura, usando a Santa; o amortalhar-se e caminhar por debaixo de um andor; o deitar-se num esquife e renascer depois, etc.

Assim se estabelecem fortes relações simbólicas de oposição entre a vida e a morte; o bem e o mal; a fértil e estéril; o branco e negro; o puro e o impuro; o masculino e o feminino; a terra e o sol; o homem e a mulher.

A água, o branco das vestes e o simular da morte, simbolizam os tempos de «limpeza», purificação, fertilidade, renascimento. O negro é a morte, o impuro dos amortalhados que se dispõem no caixão, significam o tempo estéril, o tempo impuro e dos males que impedem o renascimento que a comunidade espera.

Os rituais, que as comunidades praticam, cumprem calendários obrigatórios e fixos com grande significado no calendário agrícola, opostos no ano solar e lunar, que se manifestam em tempos festivos: dia de S. João em oposição ao Natal; o dia de Carnaval em oposição ao dia 24 de Agosto.

Esta indicação do calendário do culto da Senhora das Neves, coloca-nos temporalmente nos momentos opostos do solstício agrário, dividido em tempos opostos: a Quaresma e o Agosto.




Na primeira década do século XVIII, o culto praticava-se desde o dia cinco de Agosto até o último sábado do mês, e desde o primeiro sábado da Quaresma até ao último sábado do mesmo período.

Este calendário era móvel e regula pelas fases da lua, limitado pelos sábados. Cada um dos tempos de culto define os tempos bons e maus para fazer as colheitas e as sementeiras, para além do profundo significado real, têm valor simbólico para os agricultores que, ainda hoje, marcam as tarefas agrícolas.

O cumprimento do calendário lunar potencia as boas colheitas, marca o corte das árvores para fazer boa madeira e prevêem-se os dias dos nascimentos.

Estas atitudes, reguladas pelas aparências que a lua apresenta, sentem-se nas comunidades, na identidade completa dos seres femininos com o conjunto dos outros seres férteis no contexto cultural agrário, comportando-se a terra como uma mãe e as mães como a terra.




Transcrevemos aqui dois documentos fac-similados , um de 1706 e outro de 1886, que nos dão um conjunto de informações muito importantes onde nos aparece uma breve síntese descritiva do culto no santuário da Senhora das Neves :

«SANTA MARIA DE ABOIM, Vigairaria do Abbade de Roças […]. Está esta tam devota, como antiga imagem em hum fermoso Templo, que se fundou de esmolas no cume de huma serra, aonde quasi juntos partem este Concelho com o de Guimarães, Monte Longo, & Celorico de Basto, tem hum largo terreiro com algumas arvores, que o fazem aprazível; entende-se que naquellas brenhas a deixaria algum Christão, quando os Mouros entraraõ em Espanha, & depois a acharam huns pastores, que nesta montanha apascentavão o gado: a  imagem he de palmo & meyo, morena, como saõ as mais daquelles tempos.

Logo concorreo gente a esta apparição, de que naõ ha noticia do tempo em que appareceo: fizeraõ-lhe huma Capelinha, aonde esteve muitos annos: mas das muitas smolas, que deraõ inummeraveis romeiros, (que concorem de varias partes, por seus infinitos milagres, desde cinco de Agosto até ao ultimo sabbado do mesmo mez, & o mesmo concurso de gente se encontra do primeiro sabbado da Quaresma atè ao ao ultimo daquelle santo tempo) se fez esta grande Igreja, em que hoje está muito bem ornada no meyo de hum ermo.

In: Costa da, P. António Carvalho, Corografia Portuguesa, Tomo I, 1706, p. 134-135

 

ABOIM, […] O que mais notável ha em Aboim para ver é sem duvida o templo da Senhora da Lagoa, se não pelo que interiormente vale, ao menos pela vastidão do horisonte que d’ahi se disfruta. Da imagem, diz a lenda ter sido achada por uns pastores que andavam n’esse monte de Aboim, e do que ella hoje vale em devoção dizem-n’o as concorridas romagens que ali vão de muitas terras dos concelhos de Fafe, Lanhoso e Cabeceiras […]»

Nota: por lapso não foi referida a fonte deste ultimo trecho.

 

 

In:  Monteiro, Miguel, Cultos e Ocultos de Monte Longo, Mínia, 3ª série – ano II – 1994.

 


 

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