SENHORA DAS NEVES:
UM RITUAL AGRÁRIO NO
CALENDÁRIO LUNAR
QUANDO O TEMPO SE ABRE
E O DIABO SE SOLTA
Por Miguel Monteiro
«Na última sexta-feira
de Agosto, a cerca de 13 Km de Fafe, a serra de Fafe ganha uma particular
excitação.
As festividades da Senhora
das Neves são o atractivo de multidões de foliões que, naquele local, buscam o
divertimento comum a todas as romarias minhotas.
Porém, todas elas têm
algo de muito particular que motiva os forasteiros a marcá-las com a sua
presença anual.
No caso da Festa da
Senhora das Neves, o que anima particularmente todos os que a frequentam, além
do tradicional acto religioso da Missa e da procissão é o tirar o diabo; para
isso, o sacerdote coloca a santa na cabeça dos forasteiros e o diabo vai-se.
A crença na sua
existência é afirmada pelas suas travessuras, por muitos testemunhados, e da
sua estranha força manifestada no corpo de uma enfezada qualquer, que obriga à
participação de um grupo de valentes na condução da possessa junto do altar, de
modo que a santa lhe seja colocada na cabeça.
Na primeira década do
século XVIII, o culto era praticado naquele lugar, desde o dia cinco de Agosto,
até ao último sábado do mesmo mês, e, desde o primeiro sábado da Quaresma, até
ao último sábado do mesmo período.
Naquele século, o
Santuário é descrito como tendo começado por uma capela situada no cume da
serra, mais tarde transformada em igreja, e situada junto de um largo terreiro
com algumas árvores, que fazem o lugar aprazível e ermo, onde tinham fronteira
os concelhos de Cabeceiras, Guimarães, Monte Longo e Celorico de Basto.
Hoje, é ainda um
pequeno lugar do concelho de Fafe, territorialmente dividido, pelas freguesias
de Aboim e Várzea Cova. A lenda atribui a origem do seu culto à descoberta de
uma imagem, de cerca de palmo e meio, por uns pastores e que terá sido
escondida por algum cristão durante as invasões árabes.
O lugar era designado
por Allagoa, no século XVI, onde muitos, com alguma correcção, procuram referências
semânticas a uma terra alagada, ou seja, com abundância de água, ou pantanosa.
Porém, a natureza
montanhosa e agreste do sítio distancia-nos desta ideia, colocando-nos mais nos
significados simbólicos da água.
Os ritos que usavam a
água estavam associados, já nos tempos pré-romanos, a gestos simbólicos de
purificação e fertilidade, permanecendo até aos nossos dias no ritual religioso
de todas as crenças.
O cristianismo
prolongou até aos nossos dias o seu uso nos ritos cristãos do baptismo, da
morte, da primeira utilização de uma casa, edifício público, nas mãos do
sacerdote antes do Santo Sacrifício, da primeira água dos banhos das crianças
recém-nascidas e uma infinidade de rituais públicos e privados.
No lugar da Lagoa,
inicialmente ligado à simbologia purificadora da água e ao culto da
fertilidade, surge um outro símbolo, com igual efeito e com origens prováveis
na Idade Média: o culto da Senhora das Neves que, quando colocada na cabeça dos
romeiros, tira o diabo.
A fácil substituição
dos elementos simbólicos, em que a Santa passa a ocupar a função da água,
poderá ter como explicação a necessidade de excluir as mulheres de um santuário
feminino.
As sacerdotisas
brancas, que executariam os banhos santos, são substituídas por homens, sendo
estas forçadas ao lugar de uma representação iconográfica da Senhora das Neves
que as substitui na função purificadora e propiciatória da fertilidade.
Neste processo de
cristianização do lugar que associamos à água vemos surgir uma Santa, cuja
designação continua a ser a água em estado sólido: Neves. Esta denominação reforça
a função simbólica purificadora através da cor branca que a água em estado
sólido possui: as neves.
A água ou as Neves,
como referência simbólica da purificação, ou brancura, quando colocada na
cabeça dos romeiros liberta-os do negro e dos males, que aqui é reconhecido
como tirar o diabo.
Actualmente, todos os
que frequentam este lugar na última sexta-feira de Agosto, dirigem-se ao
interior do Santuário onde lhes é colocada a Santa tirando-lhes o demónio,
sendo necessária uma reza dita três vezes, pelo sacerdote.
Os frequentadores deste
santuário cumpriam ainda, há cerca de trinta anos, um outro rito, também
praticado na festa da Senhora do Viso, na serra da Lameira, através da
simulação ritualizada da «morte».
Do terreiro central,
onde se realizava a romaria, saíam, deitados num esquife, os que haviam feito
tal promessa à Santa. Simulavam-se mortos, numa procissão rapidamente
improvisada, não faltando a filarmónica presente para abrilhantar o momento.
A simulação da morte,
era também simbolizada por vestes brancas utilizadas pelos romeiros que faziam
o percurso da procissão cristã debaixo dos andores dos santos.
Os caixões foram
proibidos e retirados destas festividades, realizadas à margem dos programas
oficiais, e o uso de sudários foi-se perdendo com o tempo, sendo já raro o seu
uso.
Porém, quer a simulação
da morte ritualizada em acto festivo, quer dos amortalhados que se colocavam
sob os andores, integravam manifestações ritualizadas da «morte» ou passagem
para o novo estádio, abrindo horizontes para uma vida nova (novo tempo), ou novas
vidas (fertilidade), como se se tratasse de um rejuvenescimento, do qual
usufruíam os seres férteis.
Estaríamos assim
perante o uso da água que afasta os males; a sacerdotisa que esconjura, usando
a Santa; o amortalhar-se e caminhar por debaixo de um andor; o deitar-se num
esquife e renascer depois, etc.
Assim se estabelecem
fortes relações simbólicas de oposição entre a vida e a morte; o bem e o mal; a
fértil e estéril; o branco e negro; o puro e o impuro; o masculino e o
feminino; a terra e o sol; o homem e a mulher.
A água, o branco das
vestes e o simular da morte, simbolizam os tempos de «limpeza», purificação,
fertilidade, renascimento. O negro é a morte, o impuro dos amortalhados que se
dispõem no caixão, significam o tempo estéril, o tempo impuro e dos males que
impedem o renascimento que a comunidade espera.
Os rituais, que as
comunidades praticam, cumprem calendários obrigatórios e fixos com grande
significado no calendário agrícola, opostos no ano solar e lunar, que se
manifestam em tempos festivos: dia de S. João em oposição ao Natal; o dia de
Carnaval em oposição ao dia 24 de Agosto.
Esta indicação do
calendário do culto da Senhora das Neves, coloca-nos temporalmente nos momentos
opostos do solstício agrário, dividido em tempos opostos: a Quaresma e o
Agosto.
Na primeira década do
século XVIII, o culto praticava-se desde o dia cinco de Agosto até o último
sábado do mês, e desde o primeiro sábado da Quaresma até ao último sábado do
mesmo período.
Este calendário era
móvel e regula pelas fases da lua, limitado pelos sábados. Cada um dos tempos
de culto define os tempos bons e maus para fazer as colheitas e as sementeiras,
para além do profundo significado real, têm valor simbólico para os
agricultores que, ainda hoje, marcam as tarefas agrícolas.
O cumprimento do
calendário lunar potencia as boas colheitas, marca o corte das árvores para
fazer boa madeira e prevêem-se os dias dos nascimentos.
Estas atitudes,
reguladas pelas aparências que a lua apresenta, sentem-se nas comunidades, na
identidade completa dos seres femininos com o conjunto dos outros seres férteis
no contexto cultural agrário, comportando-se a terra como uma mãe e as mães
como a terra.
Transcrevemos aqui dois
documentos fac-similados , um de 1706 e outro de 1886, que nos dão um conjunto
de informações muito importantes onde nos aparece uma breve síntese descritiva
do culto no santuário da Senhora das Neves :
«SANTA MARIA DE ABOIM,
Vigairaria do Abbade de Roças […]. Está esta tam devota, como antiga imagem em
hum fermoso Templo, que se fundou de esmolas no cume de huma serra, aonde quasi
juntos partem este Concelho com o de Guimarães, Monte Longo, & Celorico de
Basto, tem hum largo terreiro com algumas arvores, que o fazem aprazível;
entende-se que naquellas brenhas a deixaria algum Christão, quando os Mouros
entraraõ em Espanha, & depois a acharam huns pastores, que nesta montanha
apascentavão o gado: a imagem he de
palmo & meyo, morena, como saõ as mais daquelles tempos.
Logo concorreo gente a
esta apparição, de que naõ ha noticia do tempo em que appareceo: fizeraõ-lhe
huma Capelinha, aonde esteve muitos annos: mas das muitas smolas, que deraõ
inummeraveis romeiros, (que concorem de varias partes, por seus infinitos
milagres, desde cinco de Agosto até ao ultimo sabbado do mesmo mez, & o
mesmo concurso de gente se encontra do primeiro sabbado da Quaresma atè ao ao
ultimo daquelle santo tempo) se fez esta grande Igreja, em que hoje está muito
bem ornada no meyo de hum ermo.
In: Costa da, P.
António Carvalho, Corografia Portuguesa, Tomo I, 1706, p. 134-135
ABOIM, […] O que mais
notável ha em Aboim para ver é sem duvida o templo da Senhora da Lagoa, se não
pelo que interiormente vale, ao menos pela vastidão do horisonte que d’ahi se
disfruta. Da imagem, diz a lenda ter sido achada por uns pastores que andavam
n’esse monte de Aboim, e do que ella hoje vale em devoção dizem-n’o as
concorridas romagens que ali vão de muitas terras dos concelhos de Fafe,
Lanhoso e Cabeceiras […]»
Nota: por lapso não foi referida a fonte deste ultimo
trecho.
In: Monteiro,
Miguel, Cultos e Ocultos de Monte Longo, Mínia, 3ª série – ano II – 1994.
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