A SANTINHA DE FAFE
«Onde isso vai!
Onde vai já a minha fé
de criança!
Acreditava em tudo… Até
acreditava nos homens!...
Hoje nem em mim
acredito!
Os santos e os médicos
julgava-os então parceiros ou sócios (mas não concorrentes desleais), a curar
os nossos achaques e os nossos males.
E, com a mesma fé,
comprava óculo para a vista e fazia promessas a S.ta Luzia.
Que feliz eu era então!
- Que era ingénuo… que
era um simplório… que não raciocinava… que era talvez um lorpa – direis vós.
Pois era, meus amigos,
pois era… mas, nesse mundo de fantasmas, santinhos e bruxas, eu sonhava, eu não
sofria os tormentos da dúvida… eu era feliz, como uma criança, no reino dos
seus brinquedos.
Que me deram a vida e a
ciência em troca?
- Um presente de
desilusões e cepticismo… e um futuro de desesperos e aniquilação.
Ora bolas para a troca…
Vem isto a propósito da
Santinha de Fafe.
Conhecem-na?
Conhecia-a eu muito
bem, nas minhas idas e vindas, da Escola de Castilhão, com o meu bibe ao vento,
a sacola aos ombros e 8 anos de saúde de ferro e estômago de avestruz.
Aquele seu quartito
todo branco, como aquela alminha de Deus toda branca, brancas as roupas, branco
o rosto e as mãos, branco o tecto… e, no meio daquela brancura toda, uma frescura
imaculada, um sorriso que parecia do céu e uns olhos vivos e irresistíveis que
nos chamavam, daquela cama de sofrimento, como um íman a que ninguém fugia.
E todos lhe
perguntávamos, eu e os meus companheiros, e toda a gente afinal, suspensos das
suas palavras, que também pareciam imaculadas e brancas:
-A santinha ainda não
comeu hoje?
A resposta, a sorrir,
era sempre a mesma:
Pois não, meus meninos.
Eu não como nem bebo.
E eu mais atrevido:
- Então também não faz
chi-chi – nem có-có?
- Pois não, meus anjinhos.
Ela mergulhava nas suas
orações brancas… e nós ficávamos em êxtase, no sétimo céu da inocência feliz.
Nessa idade, era eu um
diabrete de tal força que apanhava seis tareias, por dia: três na aula e três
em casa!
A minha santa mãe, que
Deus haja, já desesperada, lembrou-se de pedir um milagre à santinha.
Certo dia, lá fomos os
dois.
Minha mãe falou-lhe ao
ouvido… e ela sorriu.
Que si… que sim. Que
sossegasse a senhora Mariquinhas, que ela me ia tomar à sua conta.
E começou a rezar o seu
tercinho branco, diante de nós…
Não levou muito tempo
que minha mãe acreditasse no milagre. Comecei a apanhar só uma vez por dia!
E mais ainda se
convenceu, quando aos 12 anos, despertou em mim o desejo de ser padre, desejo
que veio dela certamente e durou nada menos de 10 anos de sonho.
O pior foi que a
Santinha morreu.
Surgiu, na minha vida
de homem feito, outra santa… menos branca talvez… mas mais irresistível.
E lá foi a minha
vocação para as malvas…
Mas quem me dera que o
tempo voltasse para trás, que a Santinha ressuscitasse e voltasse àquele
quartinho branco! Que eu, de novo estreasse um bibe ao vento e partisse a
cachola aos meus companheiros! E que minha mãe tornasse a acreditar nos
milagres!
Mesmo que voltasse às
seis tareias por dia…»
Por Ruy Monte
In: jornal “Justiça de
Fafe”, nº 118, 21 de Dezembro de 1978
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